domingo, 25 de maio de 2008

Areias do Tempo

Em tempos passados, as tribos nômades do norte da Europa, levavam vida simples e difícil e, como ainda hoje acontece, não se fixavam porque não se sentiam presas a terra e sim à própria vida no deserto.

O solo árido nada produzia por muito tempo e além disso, as freqüentes tempestades de areia matavam qualquer vegetação mais delicada.

Protegendo-nos na mais sincera afinidade espiritual, pudemos constatar que alguns de nossos melhores amigos trazem consigo lembranças comuns de pessoas, lugares e fatos que nada tem de semelhante com suas atuais situações de encarnados e desencarnados. É interessante notar que tais recordações, embora vindas de pessoas diferentes, casam-se conscisamente, completando um todo com sentido e significado que não escapam a sensibilidade de quem permite aos limites da subconsciência alargarem-se para acolher conhecimentos mais profundos a respeito de si próprios.

As lembranças reveladas, conscientemente ou não, por essas pessoas, cuja existência temos dividido desde muito, serão reunidas sob forma romanceada nos capítulos que se seguem, o primeiro dos quais intitula-se "Areias do Tempo" e vem a ser o extremo de nossas reminiscências.

É esse, portanto, o início do nosso tempo, da nossa amizade, do nosso amor e da afinidade espiritual que nos fez buscar-nos mutuamente visando a elevação física, moral e o ressarcimento de pesadas dívidas contraídas através das épocas, por nossa inconseqüência ou descaso às leis divinas.

16.10.1976

Christian

Parte I

Estávamos outrora em terras bárbaras rodeados pelo vento do norte. Fazia frio intenso. havia luzes ao longe, na aldeia, e os lobos da campinas uivavam sem ousar maior aproximação.

Nessas épocas distantes, nosso povo vagava pelos desertos como que a procura de um ideal inatingível. A noite, olhando o céu, não se via mais que bilhões de pontinhos luminosos a nos guiar por aquelas paragens esquecidas.

Nada tínhamos senão o céu, as estrelas, as rochas, as areias e a nós mesmos. Nossos gestos eram rudes, nossa fala quase ininteligível e a força física estava a cima da capacidade mental.

Que chances tínhamos para viver? Era a lei do mais forte contra a natureza hostil. Deixávamos para traz qualquer aldeia, oásis, gruta ou outro tipo de moradia e seguíamos o vento: vínhamos com ele e éramos levados por seu rastro. Sempre fôramos assim desde o início. E eu temia que assim continuássemos até o final dos tempos.

Parte II

Aquele dia, porém, amanheceu como se fosse diferente dos demais. O ar era transparente e o sol fazia brilhar, de maneira singular, os grânulos do chão.

Além dos montes de areias escaldantes, bem longe de onde estávamos - e justamente para onde iríamos - habitavam povos estranhos e, naturalmente, hostis. Como sempre, estaríamos apenas de passagem por suas terras, mesmo assim não seríamos bem recebidos junto aos seus oásis. Outra vez haveria luta e sangue em nosso caminho. Outra vez custariam caro alguns poucos dias de repouso. Já não podia ser! Eu já não queria lutar, não queria seguir... E foi então que notei que não estava só.

Por que, se todos sempre viveram assim, alguns teriam de querer mudar?

Pensamentos e sentimentos ocultos há muito tempo vieram à consciência de um pequeno grupo: deveria haver outro tipo de vida; um lugar que fosse nosso. Sim, e só lutaríamos para defendê-lo, se preciso fosse. Mas onde encontraríamos, entre ventos e areias, um pedaço de chão que nos aceitasse como seres viventes? E haveria outra forma de conseguí-lo que não fosse a violência? Por certo que sim. Poderíamos ter nos estabelecido em qualquer dos muitos oásis ermos que havíamos deixado para trás, ao longo de nossas vidas. O deserto era imenso. Certamente, em algum ponto escondido sob aquele sol ardente, estaria à nossa espera, uma vida mais feliz.

Formávamos um grupo pequeno e fraco que, por certo, não resistiria por muito mais tempo às rudes caminhadas. Creio que o cansaço nos ajudou a superar medos e dúvidas e a permanecer ali até o último de nossos dias. Desse modo, movidos por um forte desejo de parar, nos deixamos ficar, sentados aos pés de alguns rochedos, vendo o céu se abrir novamente, à espera de uma manhã que custou bastante a chegar.

Vimos um homem enorme e grotesco, bradando ferozmente ante a nossa decisão. Talvez quisesse saber o que faríamos para sobreviver ali, naqueles campos inférteis. Nós mesmos desconhecíamos a resposta mas sabíamos que seria inútil ir além para nos deixar morrer pela fadiga ou pela luta.

Parte III

A caravana seguiu sem nós. Na hora da partida, dois olhos cruzaram os meus e, percebi, umedeceram-se. Senti um profundo abalo, um forte aperto no coração e não soube explicar porque meus olhos também lacrimejaram. Naquele instante, aprendemos a chorar.

O grupo seguiu. Mas o vento quente não secou aquelas lágrimas nem tampouco o tempo apagou a lembrança daqueles grandes olhos negros que me fitaram intensamente. Não compreendi, não compreendemos.

Parte IV

Os poucos que permaneceram sob aquele céu azul conheceram duas palavras terríveis: nunca mais. Nosso povo jamais trilhava por duas vezes o mesmo caminho, por isso nunca mais veríamos os que partiram; aquilo era saudade. Começávamos a entender as leis do amor.

"Nunca mais", "saudade", "chorar".... tais palavras continham um grande mistério e eu jamais as afastei de minha mente.

Parte V

Procuramos alimentos e lugares mais aprazíveis. E muitas manhãs foram passadas até que, do outro lado da encosta oeste, descobrimos um pequeno vale, uma nascente de águas cristalinas e uma gruta. Era o bastante.

E até hoje, quando posso, volto àquele pequeno vale verde para olhar o céu, ver aqueles poucos bilhões de pontinhos brilhantes e lembrar os dias em que ali vivemos, dias escuros e sombrios, pois, mesmo que o sol brilhasse, nossa ignorância não nos deixava ver-lhe a luz.

Mantivemo-nos unidos e juntos vencemos a saudade, a solidão, o medo de coisas desconhecidas. Juntos buscamos alimentos. Juntos aprendemos muito sobre a natureza e sobre nós mesmos e vimos, ainda, que quanto mais tempo permanecíamos lado a lado, maior era o sentimento que nos mantinha unidos.

Diariamente, após terem caminhado horas sob o sol causticante, chegavam à nossa frente, alguns aldeões que sitiavam as imediações. Inicialmente tivemos receio que nos vissem, por isso, nos escondíamos entre as rochas, observando-lhes curiosamente, os gestos e atitudes. Por fim, certificando-nos de que eram pacíficos, demos os primeiros sinais de nossa presença e como éramos todos desejosos de paz, viemos em pouco tempo, a compartilhar com aquela gente humilde e amigável, a nascente, a parca vegetação e as areias do nosso lar.

E assim passaram-se anos, talvez muitos; sim, porque criamos filhos e envelhecemos. Envelhecemos cedo porque muito cedo começamos nossa luta neste mundo.

Parte VI

A existência nômade ficou relegada à lembrança que eram transmitidas aos mais jovens.

Vez por outra, alguma caravana errante parava para abastecer-se naquele oásis. Tínhamos medo de sermos atacados, mas apesar disso, éramos impelidos a ir ter com os visitantes, pois restava em cada um, uma esperança calada de rever nossa gente. Por melhores que fossem nossos dias, gostaríamos de saber o que tinha sidos dos outros. Quantos teriam sobrevivido? Quantos e quem já deixara o deserto e a vida? Mas nosso povo jamais voltara a um antigo caminho. Nossas dúvidas faziam parte dos segredos da vida e dos mistérios da morte. Vieram a ser esclarecidas um dia, mas, até então, de nada sabíamos.

Parte VII

Foi numa noite fria, como a nossa primeira pousada naquele lugar, após uma tempestade de areia que quase encobriu todo o vale, que senti uma angustiosa saudade. Tive novo aperto no coração e, não podendo conter-me, saí a cambalear rumo aos rochedos do Sol, como chamávamos as rochas que foram o marco primeiro daquela fase de nossa vida. Procurei não ser notado. O céu abria-se novamente e as estrelas queriam sorrir. Soube, então, que era hora de transmitir aos mais jovens o significado das primeiras palavras que aquela terra nos ensinou: amar, nunca mais, chorar, saudade!

Chegando junto às grandes pedras verifiquei, sem muito espanto, que aquela que tanto me consolou as tristezas, desde que decidimos não mais vaguear pelo deserto, seguia-me em silêncio. Buscava, ela também, um lugar distante para morrer em paz?

- "Nunca mais", murmurou em nosso linguajar primitivo.

- "Saudade", respondi com esforço, reconhecendo no chão, as areias do tempo.

E ali permanecemos, envoltos em profundas recordações, até que os primeiros raios de sol vieram denunciar nossa ausência.

O peso dos anos e da saudade não me deixavam mais permanecer perfeitamente acordado, entretanto, ainda percebi vultos se aproximando. Alguém olhou-me bem de perto, com os olhos molhados. Ah! Conheci aqueles olhos!

Conheci aqueles olhos umedecidos pelo pranto! Eram os mesmos que vi chorar, anos antes, naquele mesmo lugar. Como poderia ser? Eram os mesmos olhos que me fizeram aprender a dizer "saudade" e "nunca mais", quando ainda estávamos na flor da juventude; era ela, agora, minha filha! Ah, quantos anos!... E agora minha filha...

Era tarde para tentar compreender, mas ela voltara para mim. Num relance, recordei todos os dias de sua vida: viera à luz de maneira um tanto selvagem, como todos nós, crescera ao lado dos irmãos e das demais crianças do grupo mas sempre era a mim que procurava nas horas de dor ou ao redor do fogo, onde ouvia com desvelo as velhas histórias de nossa gente, Era sempre dela meu gesto de paciência ou o melhor de minha caça. A predileta entre filhas e filhos que me partilhavam o sangue. Sim, sem dúvida, ela voltará para mim.

Foi assim, no último minuto de vida, que aprendi que os caminhos do meu povo não eram absolutamente sem volta, como sempre pensamos. Era tarde para entender tanta grandiosidade, mas não foi tarde para compreender que ela encontrara um meio de voltar.

Aqueles olhos grandes e negros perdiam-se novamente e pareciam saber disso, iluminados que estavam por uma vaga lembrança, rápida, doce, imperceptível.

Parte VIII

Depois de dissipado o nevoeiro que nos envolveu, nossos filhos guardaram somente aquela amarga seqüência: amar, nunca mais, chorar, saudade. Os velhos companheiros puderam ensinar que a saudade é o consolo maior de quem ama, quando o terrível nunca mais se aproxima. Nós, porém, que partíamos naquela hora, viemos a saber, bem mais tarde, que a saudade é o elo que une no tempo aqueles a quem o espaço separou.


ELISA GUANDALINI

P.I.


Nenhum comentário: