Dois grupos de astrônomos passarão o Natal de 2007 em plena "guerra das galáxias". As equipes na França e nos EUA --esta última com a participação de um brasileiro-- competem para desvendar o que a Via Láctea tem aprontado com suas irmãs menores e mais próximas nos últimos bilhões de anos. A solução desse mistério pode mudar a compreensão do papel da galáxia da Terra no Universo.
No momento, os cientistas correm atrás das chamadas galáxias-satélite da Via Láctea, aglomerados menores de estrelas que se localizam na periferia da galáxia maior e estão sendo deglutidos pelas violentas forças gravitacionais exercidas por ela. Igualmente movimentadas estão as disputas internas à comunidade científica para ver quem sai vitorioso, a cada nova descoberta. Por exemplo: como se chama a segunda galáxia-satélite descoberta na periferia da Via Láctea, no ano passado?
Se você perguntar isso ao grupo de Rodrigo Ibata, do Observatório de Estrasburgo, França, ele dirá: "Canis Major, é claro". Foi esse o nome dado por ele à galáxia, depois de identificar o que supostamente seria sua região central, na constelação de Cão Maior. Ele anunciou sua "descoberta" em novembro, mas os resultados não alegraram um outro grupo, liderado por Steven Majewski, da Universidade da Virgínia, EUA.
A equipe americana, que tem entre seus membros o brasileiro Hélio Jaques Rocha-Pinto, já havia publicado diversos trabalhos a respeito da mesma galáxia, originalmente chamados de “Monoceros", antes mesmo que Ibata e seus colegas determinassem o suposto centro do aglomerado que está sendo canibalizado pela Via Láctea. Eles consideram que seu trabalho foi intencionalmente ignorado pelo grupo da França, para que Ibata pudesse anunciar com primazia a identificação do centro da galáxia.
Muitos nomes
Hoje, cada grupo batalha por um nome diferente. Há quem defenda a adoção de Monoceros, por ter sido o nome pioneiro. Outros argumentam que Canis Major é o mais lógico. Não há consenso, mas em breve pelo menos uma das sugestões deve cair.
O grupo de Majewski diz ter evidências de que o centro galáctico afinal não se encontra
O pesquisador brasileiro defende a adoção do nome Monoceros, estabelecido pela astrônoma americana Heidi Newberg, a primeira a identificar destroços da galáxia, na constelação do Unicórnio, em 2002.
Apesar das polêmicas, os trabalhos dos grupos de Majewski, Ibata e outros pesquisadores terminam confluindo para uma verdadeira revolução no modo como os astrônomos encaram a Via Láctea. "O que tem acontecido nos últimos dois a três anos é que a concepção que tínhamos sobre a Via Láctea está mudando rapidamente", diz Rocha-Pinto.
Além da disputada galáxia-satélite, há pelo menos mais uma, chamada Sagittarius (por ter seu centro na constelação de Sagitário), encontrada em 1994 por Ibata, um pesquisador britânico que viveu muito tempo na Bolívia e tem parentes no Brasil.
Ambas as galáxias estão sendo consumidas pela Via Láctea, destroçadas pela gravidade. Por seu estado degenerado e pela proximidade com o plano das estrelas da galáxia maior, é extremamente difícil identificá-las.
Com todas as barreiras, os cientistas continuam na luta. Anteontem, Rocha-Pinto estava trabalhando no observatório de Kitty Peak, Arizona (EUA), na tentativa de confirmar a existência de um terceiro conjunto de estrelas, totalmente desconhecido, localizado na periferia da Via Láctea --os dados ainda são controversos a esse respeito. Apesar disso, está cada vez mais difícil ver a galáxia à qual a Terra pertence como uma região comum do cosmos.
Fuga de dogmas
“Os astrônomos sempre tentam partir da idéia de que vivemos em sistemas relativamente comuns, nos quais não há nada especial --uma forma de evitar o velho antropocentrismo dos sistemas cosmológicos da Antiguidade, que viam o homem, a Terra e depois o Sol como centro do Universo", diz Rocha-Pinto.
"Parece que nossa galáxia não é um local comum, uma espiral qualquer no Universo. A profusão de galáxias-satélite --as duas nuvens de Magalhães, Sagittarius e Monoceros-Canis Major--, das quais duas estão em processo de canibalização, mostra que não vivemos em uma vizinhança galáctica muito tranqüila”.
O potencial de estudos como esses parece estar no rumo firme de aprofundar o entendimento da galáxia como um todo. Isso teria implicações para entender, por exemplo, quão comuns são estrelas como o Sol, ou qual é o ritmo de formação estelar nas várias regiões galácticas.
Renascença galáctica
“Creio estarmos vivendo uma época de florescimento da astronomia galáctica", diz Rocha-Pinto. "Durante anos, o termo” astronomia galáctica “foi deixado tão de lado que nem mesmo era considerada uma subárea do conhecimento astronômico, em muitos formulários que preenchemos para requisitar verba ou participar de congressos”.
Agora, com o surgimento de grandes projetos de levantamento estelar, que permitem a identificação das galáxias-satélite e sua distribuição em torno da Via Láctea, essa perspectiva deve mudar. O que sem dúvida só tende a acirrar outras disputas como a de Ibata e Majewski -para o avanço da ciência, naturalmente.
Um comentário:
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