quinta-feira, 13 de março de 2008

A Nova Realidade


Realidade consensual: fugindo da gaiola grega

Sir Philip Quarks, F.R.S. – Universidade de Cambridge – Reino Unido

Encontramos umas estranhas pegadas nas areias do desconhecido. Formulamos teorias profundas, uma após a outra, para mostrar sua origem. Finalmente, conseguimos reconstruir a criatura que deixou a pegada. E vejam! A pegada é nossa!

Sir Arthur Stanley Eddington

1 – Vanitas vanitatis

É fato conhecido dos mais assíduos freqüentadores de encontros e seminários científicos que as idéias mais excitantes e criativas, as propostas mais ousadas e potencialmente revolucionárias, não são encontradas nos textos das comunicações e nas palavras que os conferencistas pronunciam nos auditórios ou nas salas de mesa-redonda. Sabe-se que as teses realmente quentes devem ser procuradas nos bate-papos informais dos coffee breaks, nas mesas dos restaurantes ou, melhor ainda, à noite, nos bares do hotel, onde o calor etílico estimula o verbo de muitos de nossos colegas, fazendo-os soltar especulações que a cuidadosa censura dos pronunciamentos oficiais inibe ou camufla.

Neste nosso encontro de características tão inusitadas percebo que isto está mudando, e que as barreiras entre o que pode ser divulgado formalmente e aquilo que se pretenderia deixar interdito estão se diluindo a cada palestra que assistimos. Do mesmo modo, o receio de muitos dos homens e mulheres de ciência diante das ameaças à sua reputação, diante da possibilidade de serem acusados de filósofos, especuladores ou místicos está também se desvanecendo a cada dia que passa, a cada nova conferência que presenciamos.

Isto me parece um excelente sinal, porque uma das atividades mais sujeita ao desenvolvimento de pesadas máscaras sociais naqueles que a exercem é certamente a prática científica, onde qualquer sucesso individual, mesmo que relativamente modesto, está sujeito a promover a inflação dos egos e a formação de tolas e ilusórias personas, para nos valermos da terminologia de Carl Gustav Jung.

Cabe aqui observar que esse risco não é exclusivo dos praticantes da ciência, e que nas artes – especialmente nas artes cênicas – isto ocorre seguramente com maior freqüência e intensidade. É certo. Mas é bem mais compreensível que uma prima-dona do bel-canto, ou uma atriz de TV e cinema, com o ego propositadamente inflado pelos seus produtores, tenha acessos de vaidade explícita, do que vermos o esnobismo mal disfarçado de pessoas que se deveriam dedicar com perseverança e humildade à busca do conhecimento, adornando-se com uma moldura de empáfia e pretensa superioridade que passa a orientar seus atos e atitudes, influindo até mesmo naquilo que pesquisam e divulgam.

É desta caixa de Pandora que emergem a manipulação e o falseamento de dados, a sabotagem de trabalhos alheios, a competição desonesta e a apropriação de idéias de colaboradores e competidores. Com tristeza temos verificado que essas práticas constrangedoras e até criminosas disseminaram-se nas instituições científicas e já não se podem considerar apenas como exceções ocasionais. E tudo isto começa com a inflação do ego, imperceptível em sua fase inicial e impossível de detectar para quem não estiver atento e vigilante ao seu próprio proceder e aos conteúdos do próprio coração. Sem contar, também, que essas atitudes revelam traços de caráter que vêm do berço e dificilmente se modificam ao longo da vida.

Vanitas vanitatis, tudo é vaidade. Mas, no mundo que vemos esboçar-se a partir deste Simpósio, estas coisas certamente deixarão de ser passivamente aceitas como parte da condição humana para serem consideradas, na nova ética que se delineia, como decididamente inaceitáveis.

Lembro-me do que li sobre o clima de sadia excitação e mútua colaboração que existiu na Universidade de Berlim durante a República de Weimar, onde lecionaram Albert Einstein, von Laue, Max Planck e Erwin Schrödinger. Cada nova descoberta de um deles era espontaneamente aplaudida pelos demais, sem rivalidades, sem competição, sem vaidades, num ambiente em que a busca do conhecimento científico era um alegre objetivo de todos e de cada um.[i] Esse tipo de ambiente humano, que também vivi por algum tempo no Instituto Esalen, de Big Sur, persiste em algumas instituições e universidades, mas é necessário que no mundo novo que vislumbramos venha a se tornar a regra e não a exceção.

2 – Uma ética científica

Não será de cansados filósofos que veremos emergir uma nova ética de alcance mundial, porque eles vêm, há séculos, tentando vender suas propostas com sucesso apenas limitado, restrito aos seus círculos de seguidores. Não será dos líderes de desgastadas religiões formais, que viram seus dogmas serem engolfados e excretados pelas massas, quando estas passaram a exigir mitos e milagres, magias e soluções para seus problemas, recorrentemente emergentes de um cotidiano sufocante e vazio. Não será também das artes, cujas fórmulas esgotadas já pouco ou quase nada comunicam, porque na verdade pouco têm a dizer aos ouvidos neurotizados, ignorantes ou famintos de nosso tempo.

Vemos agora, com inesperada clareza, que a ética do nosso tempo deverá formar-se a partir de uma nova concepção místico/científica da totalidade cósmico/individual, revelada por uma casta de cientistas que, tendo completado seu processo de individuação, poderão trazer ao mundo novo que agora nasce algo de visceralmente criativo, síntese de expectativas e aspirações que preencherão as imensas carências da humanidade em sua prolongada saga ao longo dos milênios. O cientista que, ao se libertar das limitações do seu ego e dos grilhões da sua especialidade, alçar vôo para uma compreensão mais ampla de si mesmo e do que é o ser humano, da vida e suas relações com o planeta que habitamos e da sua própria consciência refletida na vastidão inacreditável do cosmos, reunirá em si os meios para a adoção de uma ética que não precisará de explicações ou justificativas para se impor e disseminar.

Essa nova ética será o único alicerce capaz de suportar a tarefa hercúlea de resgatar a enorme dívida social de brutalidade, ignorância e fome que estrangulam ainda dois terços da humanidade, no momento em que decidirmos realmente erradicar as misérias econômicas e moral. Admito, como condição imprescindível, que essa ética seja fundamentada no conhecimento científico teórico e experimental, no novo modelo standard de concepção do cosmos e do indivíduo, a ser reconhecido e aceito pela comunidade cientifica internacional neste novo milênio que se inicia.

A ciência e a filosofia, que nasceram juntas na Antiguidade, foram interdependentes por vários séculos e constantemente estiveram sob a tutela da religião. Ao estabelecer sua independência, a partir do século dezessete, a ciência fragmentou-se em especializações e seus interesses logo se concentraram em problemas específicos dessas diversas ramificações. Mas, se por um lado isto trouxe sucessos sem precedentes em muitos campos diferentes, deixou sem solução as questões mais amplas, que exigem a integração desses temas e objetos de estudo. Tais problemas não poderão ser resolvidos por observações mais acuradas ou pelo aperfeiçoamento de novos e melhores instrumentos.

A especialização é uma resultante do reducionismo que marcou o desenvolvimento da ciência nos três últimos séculos e contribuiu de forma decisiva para a expansão do conhecimento empírico, para o refinamento da tecnologia e de tudo aquilo que esta criou para facilitar a vida do homem sobre a Terra, apesar do seu lado sombrio de destruição e morte. Neste início de século e de milênio, a especialização, indispensável ao progresso da tecnologia, passou a ser um sério entrave para o desenvolvimento da ciência – em seu sentido mais amplo de filosofia natural – porque as investigações mais avançadas de muitos setores do conhecimento, seja a cosmologia, a física, a biologia, a informática, a psicologia e até a própria matemática, têm mostrado que uma compreensão multidisciplinar do seu objeto de estudo é imprescindível para gerar insights mais ousados em cada uma dessas áreas. No desenvolvimento mais recente da pesquisa científica estamos assistindo maravilhados como a física teórica e experimental, nas suas fórmulas e nos seus laboratórios, têm forçado o reconhecimento da subjetividade do pesquisador ou do experimentador para conferir legitimidade e sentido ao resultado dos seus estudos e investigações.

Temos visto a cosmologia encontrar-se com o espírito do homem nos confins do universo, quando se refugia no princípio antrópico que reentroniza o ser humano no centro do Ser, ao verificar que dentre os infinitos universos teoricamente possíveis somente este que a ciência reconhece, por mais absurdamente improvável que isto seja, somente este universo, com suas constantes finissimamente ajustadas, é capaz de abrigar galáxias, estrelas, vida e inteligência. É o espírito do homem que paradoxalmente retorna ao centro do Ser de forma surpreendente, reconquistando o lugar privilegiado que sempre lhe coube de direito, usurpado que fora por uns poucos séculos de alienação transitoriamente necessária.

Temos visto a ciência da computação nos brindar com a maravilha colorida dos fractais, entidades matemáticas de riqueza literalmente inesgotável e inesperada beleza, derivadas das singulares propriedades dos números imaginários. Fractais são entidades geométricas, geralmente curvas caprichosas obtidas em computador a partir de equações com números complexos, dotadas de auto-similaridade, isto é, a propriedade de repetirem sua configuração geral nos seus próprios detalhes, qualquer que seja a escala de ampliação adotada. A critério do programador essas curvas podem delimitar faixas com diferentes cores, gerando figuras inesperadas que se podem ampliar ilimitadamente, trazendo sempre surpresas a cada nova escala. As fractais são tão surpreendentes que seu principal criador, o francês Benoit Mandelbrot, quando viu pela primeira vez as configurações que surgiram no seu monitor a partir das operações que ele programara, julgou que seu computador estivesse com defeito.

Nessas formas e ritmos parecem reunir-se a técnica mais sofisticada e uma extraordinária riqueza plástica que muitas vezes sugerem algo de místico nas configurações que surgem no vídeo dos monitores a partir de simples iterações em equações matemáticas. Vejo nas fractais e nos seus desenvolvimentos mais recentes – assim como nos autômatos celulares, que as precederam e continuam evoluindo em direções inesperadas – um tema que merece profundas considerações filosóficas. Para ali confluem a tecnologia informática de ponta, a inesperada qualidade estética de composições que não foram concebidas plasticamente pelos seus criadores – que apenas manipularam equações, e não formas – e algo de numinoso, secretamente oculto nas misteriosas regiões habitadas pelas entidades matemáticas.

3 – O ressurgir dos sábios

Neste início de século e de milênio temos que nos adaptar a visões de mundo em que as categorias lógicas que herdamos dos gregos não mais serão adequadas para a compreensão da totalidade cósmico/individual. Observando com isenção e rigor a nova face daquilo que chamamos de realidade, vejo que até as dualidades fundamentais que espontaneamente nos acostumamos a adotar para o processo de conhecimento do mundo terão que ser revistas ou abandonadas.

Como uma decorrência da própria evolução do conhecimento, que agora desembarca nas praias virgens de um novo paradigma, as noções de sujeito e objeto (e, portanto, de subjetivo e objetivo), de forma e fundo, real e imaginário serão categorias relegadas à condição de configurações superadas do pensar, modos obsoletos de considerar os fenômenos, cacoetes de antigas gerações. A própria distinção entre ciência, arte, filosofia e mitologia religiosa deverá ser olhada com muita reserva, nos limites de uma concessão metodológica reducionista, adequada apenas a finalidades estritamente pragmáticas visando resultados empíricos, sem maior alcance para uma efetiva compreensão do que se passa na intimidade das coisas e dos fenômenos.

Ao que tudo indica, estamos testemunhando a ascensão para uma posição de incontestável hegemonia daqueles homens de ciência – reconhecidamente os maiores do nosso tempo – que nunca recearam ser qualificados de simpatizantes de uma visão místico/unitária do mundo e das coisas. Esses homens, responsáveis que foram por alguns dos mais fecundos avanços da ciência, sempre reconheceram e respeitaram a profundidade dos mais autênticos insights místicos sem, no entanto, abrir mão da sua condição de cientistas da mais nobre estirpe, rigorosos em seus métodos e critérios, mas sem se deixarem seduzir pela sereia positivista.

Neste momento, sinto a necessidade de reconhecer e render minha homenagem àqueles que justamente merecem o epíteto de sábios do nosso tempo, capazes que foram e são de reunir o brilho de sua inteligência e intuição privilegiada a uma humildade somente comparável ao enorme alcance de suas contribuições.[ii] São homens que, tendo superado o egocentrismo tolo e interesseiro, completaram seu processo de individuação e avançaram profundamente no sentido de realizar a síntese do individual com o universal, pois que estes, em sua verdadeira essência, espelham-se um ao outro e se fundem numa integração perceptual sem fronteiras discerníveis.

Cientistas como Albert Einstein, Niels Bohr, Pauli, Schrödinger, C.G. Jung, James Jeans, Eddington, Peter Medawar, John Wheeler, Lyall Watson, Erich Jantsch, David Bohm e muitos outros, superaram as limitações do próprio ego, conquistando assim o direito de olhar por trás das aparências e decifrar sua versão da verdade cósmica. Em seu livro Mein Weltbild(*), Einstein declara literalmente que “De acordo com uma única regra determino o autêntico valor de um homem: em que medida e com que finalidade ele se libertou do seu ego?”. Outros, entretanto, cujos nomes não preciso mencionar, aferram-se a uma auto-imagem ilusória e egocêntrica que nada tem a ver com a verdadeira individualidade que se desdobra a partir da totalidade do Ser. Para estes, a conquista do saber é mais tortuosa e mais sujeita aos becos sem saída para onde as pesquisas podem conduzir, camuflados de grandes verdades que o tempo supera e lança à cesta de papéis usados da história da ciência.

Estou certo de que a partir deste Simpósio as concepções standard da ciência mais abrangente – física, cosmologia, psicologia – não mais relutarão em admitir a constatação evidente de que ciência e misticismo têm um objetivo final comum: compreender a unicidade do ser, manifestado no florescente e sempre surpreendente caleidoscópio da multiplicidade, inesgotável como uma fractal de proporções fantásticas. Tanto os cientistas como os místicos estão cientes da unicidade última da totalidade; os primeiros procuram descrevê-la mediante uma teoria, uma equação, um formalismo matemático; os místicos buscam experimentá-la. Mas ambos são movidos pelo mesmo impulso interior e – por que não dizer? – pela mesma fé.

Com a superação dos preconceitos que levam alguns nomes destacados da ciência a se irritarem ou sentirem-se ofendidos quando são sugeridas analogias entre os objetivos do seu trabalho e as experiências dos místicos, veremos ressurgir, em versão atualíssima, a figura clássica do sábio, aquele que não se limita a uma moldura lógico/conceitual, porque sabe que o conhecimento de alcance mais amplo e profundo não se pode conter nas estruturas lineares do pensamento discursivo, nem nas sínteses quantitativas da matemática, nem se restringir a quaisquer formas exclusivistas de abordagem.

A figura clássica do cientista/místico, que usualmente associamos a Emanuel Swedenborg ou Giordano Bruno – olhados com restrições pelos historiadores da ciência por não se enquadrarem no modelo do cientista que não se deixa contaminar pela superstição –, em rigor deveria incluir também nomes como os de Isaac Newton, René Descartes e muitos outros que têm sido considerados representativos do cientista puro, pilares onde se apóia a ciência contemporânea. Hoje, é reconhecido sem maiores pudores aquilo que se manteve cuidadosamente velado durante séculos por zelosos biógrafos e editores de enciclopédias: que a prática da alquimia ocupava grande parte do tempo de Sir Isaac Newton [iii] e que René Descartes pertencia a sociedades secretas de caráter místico, que pouco ou nada tinham a ver com o conhecido racionalismo que ele desenvolveu para uso externo.

De um modo equivalente ao de figuras da ciência clássica, como Newton, Kepler e Descartes, que eram homens tementes a Deus – possivelmente numa concepção próxima à do Deus Pai judaico, predominante na época – também cientistas da mais alta cepa de nossos dias são, ou foram, homens que não abdicaram da dimensão espiritual em suas vidas, entretanto em interpretações distantes da imagem de um deus pessoal e majestático, que controlaria de fora o universo como um diretor de cena. Na verdade, bem poucos cientistas poderiam ser enquadrados no pedantismo de Laplace que, quando mostrou a Napoleão seu sistema do mundo e foi por este inquirido sobre o papel que desempenharia Deus naquela concepção, respondeu-lhe que “não tinha precisado dessa hipótese”.

Nas últimas décadas do século vinte assistimos, como um refrescante alento de renovação, o ressurgimento dos homens de ciência que não mais receiam como ameaças à sua reputação as acusações de misticismo nas suas propostas e nas suas práticas. E isto não quer dizer que esses homens tenham renunciado aos rigores do método científico, ou tenham sucumbido à “maré negra do ocultismo”, como temia Freud.

Muito pelo contrário, o que estamos vendo é uma crescente onda de esclarecimento em todos os níveis, o sucessivo desmoronar de preconceitos e limitações lógicas, a diluição das barreiras que categorizavam o conhecimento, impedindo o sadio fluir de diferentes abordagens para a investigação das questões maiores do espírito e do universo. Temos assistido ao processo de coalescência do conhecimento científico mais rigoroso com insights místicos da maior seriedade e profundidade, como resultado do trabalho de homens de ciência que nunca recearam as pressões dos seus colegas de visão mais restrita, com seus risos de mofa e a causticidade de sua ironia. Isto, quando não derivam para a agressividade, ou aberta hostilidade, sempre que são abordados os temas “interditos” dos fenômenos sincronísticos e da paranormalidade, tão amplamente documentados que sua negação já traz uma forte conotação de desonestidade – não mais de quem os investiga, mas de quem os nega.

Neste momento, de tão alta significação para a história do conhecimento humano, diante das câmaras e microfones que me põem em contato com a comunidade científica internacional, quero expressar com ênfase o meu reconhecimento a todos aqueles que empreenderam a tarefa árdua de romper as fronteiras da sofisticada ignorância, que tanto bloqueou as irrupções mais amplas do pensamento e do sentimento da humanidade na sua ânsia de galgar novos patamares para a compreensão do mundo e do ser humano.

Rendo minha homenagem ao trabalho pioneiro de divulgadores como Marilyn Ferguson, Fritjof Capra, Gary Zukav, Ken Wilber, Renée Weber, F. David Peat, Lyall Watson, Fred Alan Wolf, Michael Talbot e, principalmente, o premiado professor Paul Davies que, com sua obra extensiva e rigorosa, enfatiza ousadamente a abordagem científica de temas anteriormente privativos da filosofia e da religião, não hesitando em colocar a palavra Deus no título de seus livros.

Além destes, e de muitos outros nomes que vêm se unindo à refrescante onda renovadora, quero destacar particularmente a contribuição profunda à epistemologia da ciência que vejo representada pela obra do físico B. Alan Wallace. Este cientista, aqui presente no auditório, é também um destacado mestre do budismo lamaísta, o que lhe permitiu uma síntese extraordinariamente lúcida das contribuições ocidental e oriental para harmonizar a nossa visão de mundo, nesta época de transição tão singular quanto significativa. O livro Choosing Reality(*), de Wallace, é seguramente a melhor abordagem do caminho do meio budista aplicado à ciência ocidental, tornando-se uma obra indispensável aos estudiosos da filosofia da ciência, e da nova epistemologia que se delineia como base para o pensamento do século vinte e um.

4 – O ponto de mutação

Até o momento, tenho expressado minha alegria diante do processo de convergência que estamos constatando entre filosofia, ciência, arte e religião, e que se revela quando os nomes mais destacados da ciência das universidades passam a assumir seu interesse pela experiência mística mais autêntica como forma legítima de aproximação das questões maiores do conhecimento. Esse processo, que na verdade sempre existiu de forma mais ou menos velada entre os grandes cientistas de todas as épocas, acelerou-se a partir dos anos 70 e atinge agora seu nível mais explícito da história, nos dando a entender que estamos atingindo um crucial ponto de inflexão na evolução da ciência – o ponto de mutação de que nos fala Fritjof Capra – a partir do qual somente uma nova base filosófica poderá fundamentar a evolução futura do conhecimento.

Mas agora se pergunta: já é possível delinear-se uma síntese da nova visão de mundo predominante entre os homens de ciência que possa configurar-se como modelo standard deste ponto de mutação que estamos vivenciando? Já é possível apresentar-se neste Simpósio um modelo, ainda que provisório, do que seria a concepção da realidade hegemônica neste momento da história? Já existe um mínimo de consenso entre cientistas e místicos, entre artistas e filósofos, poetas e xamãs, a partir do qual se possa esboçar um quadro medianamente aceitável do que sejam o indivíduo e o cosmos, a experiência subjetiva e as manifestações daquilo que ainda podemos chamar de realidade objetiva? Já é possível delinear uma nova plataforma, a partir da qual venha a se desenvolver a ciência do século vinte e um?

Talvez. Estas são questões delicadas, porque, mesmo que estejamos a constatar um inequívoco processo de sobreposição entre as grandes áreas em que o conhecimento se dividiu a partir do Renascimento; mesmo que já possamos respirar aliviados, porque exorcizamos os fantasmas do século dezenove que conseguiram assombrar todo o século vinte com suas teorias materialistas; mesmo que estejamos a vivenciar um estimulante florescer nos corações e mentes de uma geração que vê no conhecimento e na sabedoria duas faces complementares de uma só realidade cósmico/individual; mesmo assim, com tudo isto, estamos distantes de um consenso e, certamente, ainda longe de uma unanimidade.

Nem se deve pretender consenso, e muito menos unanimidade, em questões tão sérias e abrangentes, porque a contribuição individual de cada homem e de cada mulher de conhecimento – seja na ciência, na arte, na filosofia, na experiência mística ou em tudo isto junto e sintetizado numa forma transcendente de conhecer – é algo a ser respeitado e preservado, uma vez que um dos mais belos paradoxos que teremos que desfrutar daqui para frente é precisamente a realização plena do Todo através da contribuição individual de cada um, de cada ser humano que tenha realizado sua função transcendente,[iv] avançando no seu processo de individuação,[v] como queria Jung.

O que posso e pretendo oferecer como minha contribuição, a este Simpósio e a todos aqueles que me vêem e ouvem nos cinco continentes, é a síntese pessoal do que estou assistindo nas manifestações mais recentes do pensar científico em todo o mundo, que aos poucos vem esfumando suas fronteiras e abrindo suas portas de percepção para outras formas de conhecer que lhe são complementares. Finalmente, quero apresentar de forma resumida, e sem qualquer formalismo matemático que lhe venha elitizar a compreensão, aquilo que eu e meu amigo e parceiro Prof. Adam Newman chamamos de teoria da consistência relacional, elaborada conjuntamente por ambos.

Para a compreensão do que seja a visão de mundo que se delineia como característica do novo paradigma – e que comporta ainda múltiplas versões e interpretações – é necessário examinar as suas raízes. Não vejo necessidade de repetir aqui as colocações do Prof. Newman, que hoje de manhã discorreu sobre as bases metafísicas em que se pretende apoiar o conhecimento científico ocidental, bastando-me registrar a crescente inquietação que coloca em xeque alguns desses pressupostos, hoje reconhecidos como inconsistentes, arbitrários ou, no mínimo, muito frágeis.

O ponto central onde se processa a ruptura epistemológica mais contundente é o conceito do que seja uma realidade objetiva ou, colocando em outros termos, a relação dialética entre sujeito e objeto, entre indivíduo e cosmos.

Cabe reiterar aqui que o realismo ingênuo dos que postulam a existência de uma realidade objetiva exterior a quem a percebe nunca foi algo pacificamente aceito na cultura ocidental e, muito menos, em outras culturas diferentes da nossa. É óbvio que, ao observador desatento e destituído de interesse por uma investigação mais cuidadosa de suas relações com o mundo, será muito mais simples usar a navalha de Occam e supor uma realidade externa independente de si próprio do que examinar alternativas menos simplórias. Isto parece de tal forma evidente que seu questionamento costuma ser visto como simples excentricidade de filósofos desocupados. Esta atitude ingênua encontrou guarida no materialismo, que se consolidou durante o século dezenove e persistiu por um processo de inércia cultural durante todo o século seguinte. O paradigma dominante na ciência convencional do século vinte permaneceu atrelado ao materialismo, ao empirismo pragmático e ao positivismo em suas diversas nuanças, apesar de já estar sendo minado desde suas primeiras décadas, atingindo proporções de uma verdadeira revolução em 1925, 1926 e 1927, com as propostas subversivas da teoria quântica. Foi a partir desses anos cruciais para a história da ciência, que o colossal relógio cósmico imaginado por Newton começou a ser desmontado e o universo passou a “assemelhar-se mais a um grande pensamento do que a uma grande máquina”, no dizer de James Jeans(*)

Nos setenta anos que se seguiram até o final do século, a progressiva diluição do mundo objetivo em que se baseava a física clássica acentuou-se consideravelmente nas equações e nos experimentos de laboratórios. Esses avanços extraordinários, entretanto, permaneceram despercebidos ou convenientemente ignorados pela maioria dos cientistas que, incapazes de romper com as bases lógicas em que foram educados, investiram-se de guardiões do bom senso, aferrando-se a um paradigma[vi] que já não correspondia aos fatos experimentais e às novas formulações teóricas. Os principais petardos que abalaram a estrutura da física clássica e a noção de realidade objetiva surgiram na segunda metade da década de 20 sob a forma de princípios, emergentes das teorias e dos experimentos daqueles anos efervescentes.

5 – Identificando princípios

Em 1925, Heisenberg obteve a primeira formalização matemática da teoria quântica, a mecânica matricial, que ele propôs aos 23 anos de idade enquanto convalescia de uma febre na ilha de Heligoland. Pouco antes, o jovem príncipe francês Louis de Broglie deduziu o comprimento de onda do elétron e sugeriu experimentos que poderiam comprovar que estes apresentariam fenômenos de difração, tal como a luz.

Em janeiro de 1926, aos trinta e oito anos de idade, Schrödinger formulou a célebre equação que o elétron teria que obedecer para compor o átomo de hidrogênio, reforçando a idéia de que o elétron poderia ser uma onda. Logo, uma série de experiências mostrou que se efetivamente o elétron apresentava fenômenos de difração, então alguma onda estaria presente. Mas seria uma onda de que, se em outros experimentos ele se mostrava claramente como partícula? Um grupo de cientistas da Universidade de Göttingen liderado por Max Born rejeitava a interpretação de que a matéria pudesse ser feita de ondas, uma vez que eles podiam contar individualmente os elétrons e outras partículas com um contador Geiger, ou observar seus rastros numa câmara de Wilson. A dupla natureza onda/partícula, que parecia comum tanto à luz – e, portanto, a toda radiação eletromagnética – como à matéria, confirmou-se como o primeiro grande paradoxo que se instalou na física para ficar.

Seriam a luz e os elétrons ondas ou partículas? Os debates prosseguiram acalorados por mais de um ano, principalmente entre Niels Bohr, Heisenberg, Wolfgang Pauli e Dirac até que, em fevereiro de 1927, Bohr e Heisenberg tiveram insights extraordinários sobre o significado da teoria quântica, que subverteriam a própria lógica, abrindo o caminho para uma nova interpretação da realidade e dos limites da capacidade humana de apreendê-la.

Assumindo um dos posicionamentos mais ousados da história da ciência, Niels Bohr enunciou o seu princípio de complementaridade, que se afastava da lógica aristotélica ao propor que partícula e onda são dois aspectos complementares sob os quais a radiação eletromagnética e a matéria se apresentam: apesar de incompatíveis “logicamente”, ambos são verdadeiros e, conforme o tipo de experimento realizado, se apresentarão de uma ou de outra forma. A onda associada a cada partícula seria então a onda das possibilidades matemáticas[vii] de que a partícula se manifeste em cada ponto considerado, e isso só ocorre quando a função de Schrödinger entra em colapso pela intervenção de um observador consciente, fazendo a partícula sair de um estado potencial para uma manifestação detectável.

Heisenberg, por sua vez, estabeleceu pela primeira vez um limite claro para a pretensão de um observador conhecer “tudo” sobre a realidade, quando formulou seu princípio da indeterminação, ou da incerteza, que mostrava a impossibilidade de se conhecer, com qualquer nível de precisão arbitrariamente desejada, pares de observáveis tais como o momento (velocidade) e a posição de uma partícula; quanto maior for a exatidão que se pretenda determinar para um desses observáveis, menor será a precisão com que se poderá conhecer o outro; e isto não decorre de qualquer limitação dos métodos ou instrumentos empregados, mas é uma característica intrínseca da própria natureza da matéria.

A partir desses princípios, estabeleceu-se a chamada interpretação de Copenhague da física quântica, que trazia profundas implicações filosóficas sobre o conhecimento do mundo submicroscópico. A primeira delas é que a realidade quântica é de natureza estatística e não determinada: um só experimento sobre qualquer propriedade quântica de uma partícula não produz um resultado confiável; ou se faz o experimento sobre um grande número de partículas ou o experimento sobre uma delas terá que ser repetido muitas vezes, para então se calcular uma média dos resultados. A segunda implicação é que não faz sentido dizer algo sobre as propriedades físicas de qualquer objeto quântico sem que se especifique precisamente qual o arranjo experimental utilizado para conhecê-lo. Ou seja: de alguma forma misteriosa a realidade quântica é criada pelo ato da observação, que provoca o colapso da função de onda de Schrödinger, tornando real algo que era apenas potencial.

Já nessa época, Niels Bohr dizia que “é um erro supor que o objetivo da física seja descobrir o que a natureza é. A física se ocupa do que nós podemos dizer sobre a natureza”. Isto abriu o caminho para que depois John Wheeler declarasse que “nenhum fenômeno é um fenômeno real até que seja um fenômeno observado” e que, mais recentemente, N. David Mermin, da Universidade de Cornell, viesse a enunciar sua famosa boutade: “Atualmente nós já sabemos, e podemos demonstrar, que a Lua não está lá, se ninguém estiver olhando”.

Enquanto os revolucionários quânticos, armados com suas equações e seus desconcertantes experimentos, prosseguiam na subversão completa do que se supunha ser uma realidade objetiva, o restante do establishment científico nas universidades do mundo ignorava, ou fingia ignorar, o que se passava.

Mas nem todos. E a reação em defesa do sacrossanto paradigma do realismo veio em 1935 chefiada pelo já então grande patriarca da ciência, Albert Einstein, que com seus aliados Boris Podolsky e Nathan Rosen, concebeu um experimento imaginário que, conforme esperava, demonstraria o equívoco das concepções quânticas. Esse famoso experimento mental, descrito em muitos livros de divulgação científica, mostraria que se as proposições quânticas fossem verdadeiras, das duas uma: ou algo se deslocaria a uma velocidade superior à da luz, o que não era admissível pela teoria da relatividade, ou então não poderia existir uma realidade objetiva independente do observador. Desde então, instalou-se uma controvérsia que durou décadas sobre o paradoxo EPR, como passou a ser conhecido. E o resultado, já obtido em laboratório, mas que parece ainda não ter sido inteiramente digerido pela comunidade científica, é desfavorável a Einstein e seus dois colegas. Conforme discorreu o Prof. Newman em sua comunicação, são muitas as diferentes interpretações da teoria quântica propostas e debatidas entre os cientistas, mas a que menos parece corresponder aos fatos experimentais e ao formalismo teórico é justamente a interpretação realista, que admite a existência objetiva de uma realidade bem comportada, a funcionar independentemente de quem a observe.

Atualmente, convivem no fórum de debates da ciência outras teorias que estendem e aprofundam as propostas quânticas e, com variados embasamentos metafísicos, procuram ajustar-se aos fatos e às equações. Algumas dessas teorias estão fundamentadas em sólido formalismo matemático[viii] e outras ainda não chegaram a tanto, embora seus conceitos pareçam respeitáveis e convincentes para explicar importantes segmentos da totalidade cósmico/individual – hoje abrangendo, conforme a visão pós-quântica, o misterioso e esquivo entrelaçamento objetivo/subjetivo do mundo.

Alguns dos nomes mais respeitados da ciência contemporânea, como Henry Pierce Stapp, Geoffrey Chew e David Bohm puseram em risco suas reputações como cientistas ao reconhecerem que a evidência do papel essencial do observador num experimento implicava no reconhecimento da consciência, da subjetividade, do espírito, a vertente imaginária rejeitada pelo ingênuo materialismo do velho paradigma. E como eles muitos outros, na física, na cosmologia, na neurologia, na ecologia, já não receiam falar em espírito, no papel determinante da consciência, na face imaginária do Ser, “a pedra que os construtores rejeitaram e que depois mostrou ser a pedra angular”.[ix]

É nesta nova onda, que chega avassaladora para abrir as amplas perspectivas do novo milênio, que Adam Newman e este que vos fala inserem-se com uma proposta que denominamos teoria da consistência relacional, que exponho a seguir, em suas linhas gerais.

6 –Teoria da Consistência Relacional

Tal como na proposta da concepção bootstrap,[x] de Geoffrey Chew, nenhum aspecto da consistência relacional pode ser considerado básico; quase todos são importados de outras teorias e somente subsistem pela sua interdependência numa configuração coerente, capaz de elucidar enigmas que os demais approaches não resolvem per se. A consistência relacional é, assim, uma teoria bootstrap, inclusive porque recusa a concepção reducionista arraigada ao paradigma vigente de que o universo, ou a totalidade, sejam feitos de constituintes básicos elementares, tais como partículas, leis, constantes etc. Na visão da consistência relacional tanto a busca de subpartículas elementares como a investigação do que teria ocorrido na fração mínima de tempo linear após o big bang são caminhos ilusórios que a nada conduzirão.

Um aspecto a ser considerado preliminarmente é o quadro dimensional onde se insere a totalidade acessível ao conhecimento, que se manifesta em duas vertentes, duas faces de uma mesma moeda, compatibilizadas por uma extensão do princípio de complementaridade de Bohr: a face dita real ou objetiva, manifestada nas três dimensões do espaço (euclidiano ou não, dependendo da escala considerada ou da opção do investigador) e a face dita imaginária ou subjetiva, manifestada nas três dimensões do tempo, conforme a proposta apresentada neste Simpósio pelo ilustre Prof. Kether Weisskopf. Assim, o ser cognoscível, em sua totalidade, tem duas faces opostas e complementares, classicamente vistas como matéria e espírito, que nada mais são do que a nossa forma particular de perceber aquilo que, sem este recurso, seria racionalmente inapreensível. Lembremo-nos que Einstein já dizia que “tempo e espaço não são propriedades do universo em si, mas apenas formas pelas quais o percebemos”.

Desse modo, a moldura dimensional que contém o todo cognoscível compreende as três dimensões “reais” do espaço x, y e z mais as três dimensões “imaginárias” do tempo t, u e v. Todo o real e todo o imaginário, todo o mundo “objetivo” e também o “subjetivo”,[xi] todos os fenômenos físicos e mentais – inclusive os paranormais – podem ajustar-se nessa treliça dimensional. No sistema perceptivo ordinariamente adotado, os conteúdos “reais” – que formam o universo físico delimitado pelos físicos e cosmologistas como seu objeto de estudo – dizemos que existem. Por sua vez, os conteúdos do mundo mental e “imaginário”, inclusive as criações ideais das subjetividades, humanas ou não, dizemos que existem. Especular sobre outros conteúdos, abstratos ou não, fora dessa moldura dimensional, é ocioso porque estes não seriam acessíveis ao conhecimento. As próprias entidades matemáticas que descrevem algo fora desse quadro somente existiriam, ou melhor, enquanto entidades matemáticas abstratas vinculadas ao seu peculiar status ontológico na vertente imaginária do Ser.

Note-se que, ao admitirmos o tempo como tridimensional e imaginário, todo o problema das origens e da evolução passa a ser referido a uma compreensão não seqüencial dos fatos cósmicos. Esta é, possivelmente, a revolução de maior alcance da nossa proposta, ao subverter todas as formas de investigação relacionadas ao tempo unidimensional e linear, com sua seta do tempo inexoravelmente atrelada ao big bang e ao segundo princípio da termodinâmica. Isto nos coloca diante da concepção budista do Ser. D.T. Suzuki nos ensina que

O Buda (...) não é mais aquele que vive no mundo concebido em termos de tempo e espaço. Sua consciência não é mais a consciência de uma mente comum, que deve ser regulada de acordo com os sentidos e a lógica. (...) O Buda (...) vive num mundo espiritual que possui suas próprias regras.

Aquilo que os físicos e cosmólogos reconhecem como sendo o universo, o cosmos cujos segredos estudam, na verdade não é uno nem objetivo, a não ser de uma perspectiva estritamente consensual. Cada subjetividade, cada espírito, cada observador, cada cientista, cada pessoa de qualquer nível ou padrão cultural, cada consciência – seja ela humana ou não, seja ela terrestre ou não –, carrega em torno de si seu próprio universo de beatitude ou de dor, de ignorância ou de luz, construído ao longo dos eons de sua existência transtemporal. Isto nos remete à teoria das mônadas, de Leibniz, sábio que revela uma surpreendente atualidade por ter intuído, ou antecipado, importantes aspectos de muitas teorias recentes, particularmente a visão holográfica do cérebro (Karl Pribram) e do universo (David Bohm).[xii]

O nosso modelo da consistência relacional apóia-se sobre os ombros desses precursores.

No campo das interpretações dos paradoxos quânticos endossamos enfaticamente a descoberta (é assim que a vemos) de que a consciência cria a realidade, no momento em que promove o colapso da função de Schrödinger, tornando atual (real) aquilo que não passava de uma existência potencial (imaginária). Entendemos que esse processo, repetido incontáveis vezes em todos os atos de observação, vai atualizando os mundos contidos potencialmente nas múltiplas possibilidades quânticas e construindo em torno dessa subjetividade o seu universo(*) Assim, vinculamo-nos também à interpretação dos múltiplos universos, de Hugh Everett III, ao admitir que o universo é, na verdade, um multiverso, um inesgotável desdobramento de universos, que podem ter entre si diferenças mínimas ou muitíssimo acentuadas. O que distingue a nossa interpretação da de Everett, é que ele admite que todas as versões possíveis de universos de alguma forma “existiriam”, superpostas num hiperespaço de infindáveis realidades simultâneas, das quais nós, coletivamente, só teríamos consciência de uma. Em nossa visão somente se atualizam as versões centralizadas em subjetividades que lhes sirvam de núcleo existencial, cada subjetividade com seu próprio universo paralelo. Consideramos evidente que algo que não é percebido não pode ser real, como já observou John Wheeler, portanto universos que não tenham uma subjetividade consciente como núcleo perceptual não podem existir.

Esta nossa proposição, entretanto, não significa que cada subjetividade (ver aqui conceito de holons de Ken wilber) esteja confinada a um só universo paralelo que, para ela, existiria como um único universo privado, segundo a concepção clássica. Não é assim. A nosso ver, cada subjetividade é um pólo de desdobramento de universos, que ela provoca a cada opção quântica segundo suas decisões, conscientes ou não, que chamaríamos de observações – equivalentes ao que nos experimentos quânticos formais se costuma caracterizar como medições. Desse modo, cada subjetividade centraliza um foco de desdobramento de universos paralelos da forma prevista pelo cálculo e admitida na interpretação de Everett. Com a diferença fundamental que, enquanto naquela interpretação existe um só sistema de desdobramento, numa única hipotética realidade objetiva que todos coabitaríamos, em nossa proposta essa realidade objetiva, independente de quem a observe e comum a todos, deixa de ter existência autônoma e passa a ter uma existência de natureza consensual. Que, por sua vez, não é única: são inúmeras as realidades consensuais, porém compatíveis e consistentes para as subjetividades que nelas residem. Realidades consensuais que não estão em interação podem ser muito diferentes entre si.

Sinteticamente, nesta nossa proposição, aquilo que poderíamos chamar de realidade passa a ser entendido como uma vastíssima rede intersubjetiva que tece realidades consensuais entre as subjetividades que estejam em processo de interação. A geração dos fenômenos compartilhados por múltiplas subjetividades – e que se apresentam como objetivos – ocorre segundo processos de natureza holográfica,[xiii] em que cada parte contém informações sobre o conjunto interagente. Isto sintetiza as teorias de Pribram e Bohm numa concepção única e sugere um locus dimensional inteligível – o tempo tridimensional – onde se podem inserir confortavelmente a ordem implícita de Bohm, o domínio de freqüências de Pribram, os campos morfogenéticos de Sheldrake, os fenômenos parapsicológicos, os arquétipos de Platão e Jung etc. Nós vemos e vivemos um universo consensual compartilhado com outras subjetividades próximas – diz-se interagentes – construído matematicamente por nossa consciência segundo as transformadas de Fourier,[xiv] ao interpretar freqüências eletromagnéticas oriundas de outras subjetividades de uma vasta hierarquia, que são projeções geométricas das dimensões superiores do tempo. A consciência é um holograma que reproduz “um” universo holográfico em perpétua mutação pela ação contínua das subjetividades em interação. Os processos mais presentes na geração desse mundo consensual são a interferência e a ressonância de freqüências eletromagnéticas – muitas vezes insuspeitadas, mas presentes. Estamos de acordo com o cientista escandinavo Hannes Alfvén, quando ele diz que o cosmos é muito mais um ser eletromagnético do que gravitacional.

Resta-nos agora examinar o aspecto remanescente, que parece indispensável para consolidar essas proposições, que é a explicitação do princípio que permite compatibilizar os muitos universos em processo de atualização em torno de cada pólo consciente, ou subjetividade, de modo que a ilusão de uma única realidade objetiva consistente apareça da forma convincente que ordinariamente se constata. Se cada subjetividade desdobra seus próprios universos, como é possível que isto não seja perceptível e a sugestão de uma única realidade objetiva nos pareça óbvia?

Na tradição dos investigadores pioneiros dos mistérios quânticos, sempre que foi atingido um aspecto crucial daquilo que se chama de realidade e dos meios e limites que temos para apreendê-la, emergiu algo como um princípio, um parâmetro básico que estabelece um padrão que define o processo cognoscente. Assim, surgiram o princípio da complementaridade de Bohr, o princípio da indeterminação de Heisenberg, o princípio de exclusão de Pauli e vários outros que balizaram o que parecem ser características intrínsecas do Ser ou, pelo menos, do nosso processo de apreensão de seus aspectos mais profundos.

Nesta mesma linha, vislumbramos o que podemos chamar de princípio de consistência, que compatibiliza os diversos mundos gerados por cada uma das subjetividades interagentes, de modo que o tecido consensual se apresente sem falhas ou fissuras. Esse princípio, tão geral e abrangente como os outros que mencionamos, é uma das condições indispensáveis para que os conteúdos de um tempo não linear – de uma treliça bi e tridimensional – possam projetar-se em nosso espaço-tempo perceptível para interagirem entre si.

Pelo princípio de consistência, a seta do tempo surge pelo sequenciamento não conflitante dos colapsos de ondas quânticas (função de Schrödinger) que ocorrem a partir das infindáveis intervenções conscientes no super-holograma formado pelos hologramas individuais de cada subjetividade. A realidade consensual vai, assim, se formando pelo sucessivo acúmulo no tempo linear dos colapsos quânticos de todas as intervenções promovidas no super-holograma comum às subjetividades interagentes. Essa seqüência, que só existe no tempo linear da vivência e percepção de cada uma das subjetividades envolvidas, espalha uma realidade que se atualiza em um campo consensual crescente como uma fractal que incorpora a cada passo novas subjetividades, sem contradições nem inconsistências.

Entretanto, essa compatibilização nem sempre é perfeita. Como se depreende das proposições acima, aquilo que chamamos de realidade consensual, e que a nosso ver substitui o conceito de realidade objetiva, forma-se no tempo linear como manchas auto-consistentes segundo funções matemáticas de autocorrelação de características fractais que se espalham a partir de diferentes centros de geração; como nossa perspectiva é holográfica e não local, admitimos que essas manchas trocam informações entre si, mesmo que não estejam próximas, prevenindo sua compatibilização quando mais adiante entrarem em contato.

Mas esse processo tem falhas eventuais, que podem ser detectadas enquanto não se ajustam e cicatrizam. Quanto mais distantes no espaço-tempo perceptível e menos interagentes entre si, mais provável será a ocorrência de fissuras de compatibilidade entre diferentes manchas de realidades consensuais em formação. Um curioso exemplo é o caso dos neutrinos, que nas inúmeras pesquisas realizadas no Ocidente durante muitos anos não acusaram qualquer massa, mas nos laboratórios da Rússia invariavelmente apresentam-se como portadores de massa muito pequena, mas mensurável. Esta fissura cicatrizou-se em janeiro de 1995 quando, finalmente, os experimentos americanos encontraram massa no neutrino.

A concepção consensual da realidade e do cosmos repousa sobre uma base epistemológica radicalmente distinta da que sustentou a ciência até o século vinte e afasta-se substancialmente da herança cultural do Ocidente, de raízes gregas. Inúmeros são os aspectos cruciais que precisamos rever em todas as ciências e métodos de pesquisa. Mais do que uma revolução, o que se configura nas relações do indivíduo com o cosmos é uma verdadeira subversão de tudo que se supunha conhecer na cosmologia, na física, na antropologia, na história, na psicologia. E, daqui para frente, será indispensável que com ousadia e humildade – não as vejo como incompatíveis – estejamos dispostos a assumir os paradoxos e maravilhas que se oferecem ao conhecimento humano neste novo milênio.


(*) O Mundo como Eu o Vejo

(*) Escolhendo a Realidade

(*) Ainda no século dezenove, Sir Humphry Davy teve um insight equivalente a este de Sir James Jeans.

(*) John Wheeler sustenta que são os observadores, pelo seu ato de observar, que criam uma “textura de significado” que se torna o universo. A este cenário ele denomina “universo participativo”. A diferença da concepção de Wheeler para a nossa é que ele supõe que um só universo “objetivo” vai sendo criado pelas observações dos inumeráveis sujeitos, enquanto na nossa interpretação cada observador cria seu próprio universo paralelo, que se desdobra e se compatibiliza com os demais enquanto os sujeitos que os criam estiverem em interação.


Notas

[i] A cientista Ilse Rosenthal-Schneider, que graduou-se em física pela Universidade de Berlim nessa época, diz em seu livro Reality and Scientific Truth [Realidade e Verdade Científica] que “Quando Einstein, von Laue e Planck e, mais tarde, Schrödinger, lecionavam em Berlim um clima excepcional de harmonioso intercâmbio de idéias tornou-se característico daquele período. Cada um dos estudantes deve ter-se sentido beneficiário daquela cooperação sem atritos.” A teoria quântica floresceu inteiramente nos anos fecundos entre 1925 e 1927. Referindo-se a esse período extraordinário da história da ciência, Paul Dirac disse a J.C. Polkinghorne que “foi um tempo em que homens obscuros realizaram um trabalho de primeira grandeza”. A nossa perspectiva mostra hoje que a visão de que esses homens seriam “obscuros” revela apenas a humildade indispensável ao trabalho científico de grande alcance, e que esses homens foram na verdade gigantes que mudaram o mundo.

[ii] Conta o Prof. Weisskopf, que privou da amizade de Einstein, que certa vez disse ao mestre, em Princeton, que um físico recém-formado gostaria de trabalhar com ele e ressaltou que se tratava de um bom rapaz “muito humilde”. Ao que Einstein lhe retrucou: “Mas como pode esse jovem ser humilde? Ele ainda não fez nada...”

[iii] Richard Westfall, o melhor dos biógrafos de Newton, informa que “Ele não tropeçou na alquimia, descobriu seu caráter absurdo e passou a trilhar o caminho da química sóbria e racional. Ao contrário, partiu da química sóbria e desistiu dela bem depressa, em favor do que julgou ser a maior profundidade da alquimia.” Mais adiante, comenta: “Na filosofia mecânica, Newton havia encontrado uma abordagem que eliminava a alma das operações da natureza e explicava essas operações unicamente pelas exigências mecânicas das partículas de matéria em movimento. A alquimia, em contraste, encarava a natureza como vida e explicava os fenômenos pela intermediação ativadora da alma.” E conclui “É necessário encarar o interesse de Newton pela alquimia como uma manifestação de rebeldia contra os limites restritivos que o pensamento mecanicista impunha à filosofia natural.”

[iv] Na psicologia analítica de C.G. Jung chama-se transcendente à função que, exprimindo-se por meio de símbolos, conecta os opostos, permitindo a transição do irracional para o racional, do real para o imaginário e vice-versa, fazendo a conexão do consciente com o inconsciente. Depois de propor tal denominação para esta importante função psíquica Jung verificou – com um sorriso – que já havia na matemática superior uma função de números reais e imaginários que também se denominava função transcendente.

[v] C.G. Jung denomina individuação ao processo que se deve realizar ao longo da vida de uma pessoa, e que consiste em encontrar e reconhecer dentro dela o arquétipo do Self, o Si Mesmo, que é a expressão individual da Totalidade. Trata-se de um processo espiritual que nem todos conseguem completar e que implica no reconhecimento de que o ego de superfície é limitado e ilusório. Ao realizar o processo de individuação a pessoa passa a vivenciar o paradoxo de ser um homem ou mulher comum e, ao mesmo tempo, uma manifestação do Self, do Ser Divino imanente em cada alma individual. O processo de individuação, é a realização do preceito délfico da sofrosyne, ou conhecer-se a si mesmo, e exige a superação do egoísmo e da persona, ou máscara social.

[vi] A noção de paradigma, desenvolvida por Thomas S. Kuhn no seu clássico The Structure of Scientific Revolutions [A Estrutura das Revoluções Científicas], de 1976, define-se como o conjunto de pressupostos, conceitos, métodos, procedimentos e expectativas comuns a uma comunidade científica numa determinada época da sua história, que geralmente delimita o que “pode” ou “não pode” ser admitido como “verdade” ou “digno de consideração”.

[vii] Uma onda de possibilidade não é a mesma coisa que uma onda de probabilidade, como aparece equivocadamente em alguns textos sobre esse tema. Probabilidade é a raiz quadrada da possibilidade. Uma onda destas tem o mesmo status existencial das entidades matemáticas; não tem existência real mas está sujeita a todos os fenômenos de difração e interferência das ondas ditas reais.

[viii] A teoria da relatividade complexa, do físico francês Jean-Émile Charon, publicada em 1977, estende o campo de aplicabilidade da teoria da relatividade de Einstein a um espaço-tempo complexo real/imaginário (no sentido matemático) a partir da utilização dos números imaginários, constituindo-se numa das teorias recentes de mais completa formalização matemática. Mas nem mesmo assim foi bem recebida pelo establishment científico, que lançou sobre ela uma cortina de silêncio, talvez porque o Prof. Charon ouse utilizar a palavra espírito para designar a vertente imaginária do Ser, estudada e descrita a partir de sua teoria.

[ix] Cf. Evangelho Gnóstico de São Tomé, versículo 66, Salmo 118-22 e Atos 4-11.

[x] A interpretação bootstrap do mundo quântico postula que não existem partículas fundamentais e que cada partícula subatômica é “feita pelas demais”. A palavra bootstrap (correia das botas) alude a uma metáfora que sugere que o mundo se ergue “puxando pelas correias das próprias botas”.

[xi] Os conceitos que colocamos entre aspas formam pares intercambiáveis, como as conhecidas figuras ambíguas da Gestalttheorie

[xii] Leibniz não apenas intuiu as atuais concepções holográficas – ele propunha que cada mônada era um “espelho vivo de todo o universo” – como também a visão bootstrap de Geoffrey Chew, uma vez que nenhum dos aspectos de sua doutrina pode ser considerado fundamental ou principal; para ele, os diversos aspectos de seu sistema eram complementares entre si e apoiavam-se em todos os demais. Além disso, foi Leibniz quem propôs pela primeira vez a existência de uma mente inconsciente, ou subconsciente (cf. Monadology 19-21), antecipando Freud e Jung em mais de um século.

[xiii] Holografia é um sistema óptico de registro de imagens que utiliza os raios laser e o fenômeno da interferência das ondas luminosas para codificar em filme fotográfico imagens tridimensionais de objetos, que podem ser reproduzidas no espaço com nível de definição e características bem diferentes da fotografia comum. Enquanto na fotografia a cada ponto do objeto corresponde um ponto equivalente no filme, na holografia cada ponto do filme contém informações sobre todo o objeto. Se cortarmos um pedaço de um filme fotográfico teremos apenas um fragmento da imagem do objeto, mas se tirarmos um pedaço de um filme holográfico, ainda assim poderemos projetar com ele a imagem completa do objeto, apenas com nitidez menor do que se o filme estivesse inteiro.

[xiv] Chama-se transformada de Fourier ao sistema de análise matemática desenvolvido por esse matemático francês para decompor qualquer onda, não importando sua complexidade, num somatório de ondas senoidais simples.


Sir Philip Quarks é um personagem fictício criado por Beto Hoisel

Por:- Beto Hoisel

Indicado por:- Silvana Matos e Ivan Ditscheiner

Vicente Chagas

Setembro/2006.



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